Em Administração é comum a leitura de autores clássicos, buscando extrair os “ensinamentos” que esse oferece a gestão das organizações. Muito embora, esses autores, muitas vezes, não tenham escrito uma palavra direcionada a esse objetivo. Maquiavel é um desses clássicos, que é avidamente consumido pela administração. Nesse post, procuro discutir um pouco essa relação Maquiavel e Administração.
Em uma instigante avaliação sobre a relação Maquiavel e Administração Bos (2002) afirma:
Maquiavel é uma figura popular nos círculos de administração. Vários best-sellers surgiram invocando o título Maquiavel para administradores. Eu não estou certo se o filósofo italiano aprovaria o seu uso com objetivos administrativos, mas não há dúvida que ele atrai à imaginação das pessoas nas empresas que querem manter o controle e que não gostam da tagarelice sem sentido sobre a moral nas organizações. Maquiavel é visto frequentemente como uma espécie de patriarca que oferece aos seus leitores uma visão sólida e genuína da realidade. Afinal, alguém que argumenta que líderes deveriam ser capazes de recorrer à prática da mentira se isso fosse necessário, pode facilmente ser entendido como tendo vindo para familiarizar nada menos que a verdade nua e crua da realidade. Mas será que Maquiavel realmente oferece pistas valiosas sobre a forma como o líder empresarial deve agir? Talvez, mas muito provavelmente não na forma como os líderes empresariais esperam. (BOS, 2002, p. 51-52, tradução livre)
Esse interesse dos administradores por Maquiavel, pode ser explicado, pelo menos em parte, devido ao fato que os autores gerencialistas, que são os que possuem maior influência sobre a prática administrativa, consideram a administração como a-política, neutra, que sendo guiada pela lógica da racionalidade instrumental está focada exclusivamente no desempenho econômico. Deste modo, a política dentro das organizações é vista como uma disfunção, uma vez que os atores estariam colocando seus próprios interesses sobre os da organização.
Mas essa aplicação de Maquiavel, muitas vezes, admite o Administrador como o Príncipe Moderno e o Reino como as Organizações atuais. Deixando de lado, o contexto no qual o autor estava inserido. Para Galie e Bopst (2006) está aplicação de Maquiavel a administração ocorre com base em alguns pressupostos, dos quais destaco dois. O primeiro é a utilização da guerra como uma metáfora à administração. Desta forma, os conflitos militares devem ser lidos como conflitos econômicos e o líder moderno não deve se preocupar com outra coisa além da competição. O segundo ponto, é a intercambialidade dos domínios políticos e econômicos. Muitos dos autores que tratam de Maquiavel aplicado a administração tratam o domínio político e o governo como semelhantes ao mundo dos negócios e das grandes organizações, não distinguindo o fato que o Estado tem o poder de fazer leis, enquanto as corporações são apenas seguidoras das leis.
Entretanto, podemos dizer também que há uma dimensão de Maquiavel esquecida pela administração. Conforme relata Skinner (1996), Maquiavel se insere na época dos teóricos dos espelhos, em que se argumentava que a ambição adequada para um homem virtuoso deveria ser a honra, a glória e a fama, e que somente a virtude poderia se contrapor ao poder da fortuna, isto é, do acaso. Além disso, para esse teóricos o objetivo de governar deveria ser manter a paz. Desta forma, não há em Maquiavel o interesse do poder pelo poder.
Mas Maquiavel, não estava totalmente alinhado aos seus contemporâneos em dois pontos. O primeiro se refere ao papel da força bruta na vida política, sendo que o príncipe deveria estar disposto a se valer dela sempre que a persuasão não fosse suficiente. Essa questão largamente ignorada por aqueles que buscam aplicar Maquiavel a administração. O segundo ponto se refere ao papel da virtude na vida política. Nas palavras de Maquiavel:
Reconhecemos todos que seria muito louvável que um príncipe possuísse todas as boas qualidades [...], mas como isto não é possível, pois as condições humanas não permitem, é necessário que [o príncipe] tenha prudência necessária para evitar o escândalo provocado pelos vícios que poderiam abalar o seu reinado [...]. Contudo, não deverá se importar com a prática escandalosa daqueles vícios sem os quais seria difícil salvar o Estado; isto porque, se refletir bem, será fácil perceber que certas qualidades que parecem virtudes levam à ruína, e outras que parecem vícios trazem como resultado o aumento da segurança e do bem-estar (MAQUIAVEL, 2007, p. 99).
Pois as políticas adotadas por um príncipe nunca são avaliadas pelas suas qualidades intrínsecas, mas pelos seus resultados e aparências que produz. Isso é o que quer dizer a clássica citação de Maquiavel: “Na conduta dos homens, especialmente dos príncipes, contra a qual não há recurso, os fins justificam os meios” (MAQUIAVEL, 2007, p. 111). Portanto, o que um príncipe precisa fazer, caso ele não seja convencionalmente virtuoso, é ser prudente o suficiente para escapar dos escândalos e da má reputação que a posse de determinados vícios pode lhe causar, o que colocaria em perigo a manutenção de seu estado (SKINNER, 1996, p. 153).
Essas questões embora representem a necessidade de uma postura amoral do príncipe na esfera de sua vida pública, não implica em uma atuação corrupta deste para com a sociedade, as instituições ou na condução do seu reino. Pelo contrário, o príncipe devido a sua virtù e coragem deveria ser o responsável pela reforma das instituições, das sociedades corruptas, e do seu próprio reino, empregando para isso os meios que fossem necessários, inclusive a força bruta. Tal fato é costumeiramente esquecido pelos aplicadores de Maquiavel a administração, que defendem apenas o errôneo ensinamento do poder pelo poder.
Então é isso, até a próxima.
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Quem é Maquiavel?
Nicolau Maquiavel (1469-1527) viveu em Florença, na Itália, no período que ficou conhecido como Renascença, mais especificamente, na Renascença tardia. Trabalhou a maior parte de sua vida na segunda Chancelaria da República Florentina, como secretário. No entanto, Maquiavel nasceu intelectualmente para o mundo em seu período de afastamento forçado da vida pública, quando os Médici retornaram ao poder de Florença, em 1513. Na opinião de Lerner, “ironicamente, é esse período de desgraça que representa o ponto mais alto de sua força criativa”, pois foi nele que escreveu todos os seus livros (O Príncipe, A arte da guerra, Os comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, A história de Florença, Mandrágora), além de poesias, estórias e esboços de biografia (LERNER, 1950, p. XXVIII). E quando, finalmente, o governo democrático consegue retornar o poder, em 1527, Maquiavel ainda mantinha a esperança de retomar sua vida pública, mas vem a falecer antes que isso aconteça, sem saber, inclusive, que O Príncipe, que já circulava em manuscrito, tinha-o tornado um inimigo da república (LERNER, 1950). Como bem sintetiza Sadek (1999), Maquiavel foi “o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtù”.
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Referências
BOS, René ten. Machiavelli’s Kitchen. Organization. London: v. 9, n. 1, p. 51-70, 2002
GALIE, P. J.; BOPST, C. Machiavelli & modern business: realist thought in contemporary corporate leadership manuals. Journal of Business Ethics: v. 65, p. 235-250, 2006.
LERNER, M. Introduction. In: MACHIAVELLI, N. The prince and the discourses. New York: Modern Library, 1950.
MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2007
SADEK, M. T. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtù. In WEFFORT, F. C. Os Clássicos da política. 12 ed. São Paulo: Editora Ática, 1998.
SKINNER, Q. As funções do pensamento político moderno. Tradução de Renato Jaime Ribeiro. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
[...] This post was mentioned on Twitter by Mauricio C. Serafim and ricaardomarques, Ronei da S.L. Junior. Ronei da S.L. Junior said: Maquiavel e Administração http://goo.gl/fb/r8Q77 [...]
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